A casa é uma concha mais escavada e mais profunda onde cabem as divisões do mar e ainda a pérola A onda regurgita na casa Não sei se lava com água salgada ou se suja as paredes de vómito Não sei – porque a onda é um motim de idas e voltas e de vozes que discutem e contudo o som do mar enche a alma e há a paz acima do barulho -- não sei não sei se cresce ou se deita abaixo Parece-me o eixo ...
Ler MaisNão observei os pássaros. Se morresse hoje, iria ignorante dos pássaros. Vejo-os à beira-mar. Costumam estar de costas, Debicam a areia. Voam cheias de ondas as gaivotas. Gritam. Perco-me na tradução do que me parece brutalidade e guinchos. Há de haver subtileza no que não compreendo, porventura uma hermenêutica matemática e física que rejeito, pois as asas abrem as gaivotas em naves gigantes que voam. Tento a aproximação pela forma. As aves são mãos que se intersectam na quilha. Escrevem com o cálamo hirto de tinta madrepérola. A transpiração das algas não as detem. Voam. Sempre. Põem-se longe e fazem-se perto. Comem ...
Ler Mais«Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus é semelhante ao grão de mostarda que o homem, pegando nele, semeou no seu campo; o qual é, realmente, a menor de todas as sementes; mas, crescendo, é a maior das plantas, e faz-se uma árvore, de sorte que vêm as aves do céu, e se aninham nos seus ramos.» Mateus 13:31-32 Jesus anunciou um reino peculiar. Imagino os seus contemporâneos a vê-lo ...
Ler MaisO silêncio é uma palavra difícil? Uma sala grande onde o vazio é ensurdecedor? Onde eu vivo não há o rio do tempo e a sala do silêncio é soalheira, um lago de luz, onde, por vezes, as águas se turvam. As artérias do tempo pulsam-te visivelmente nos punhos, no pescoço e nas têmporas. No meu corpo, porém, não há tecidos, vasos, líquidos onde o tempo possa dissolver-se. E o que lês no braile do silêncio tem as marcas de aguilhões que te agridem. Mas, repara. São marcas. É a dor fantasma em membro de outrora? Não ter tecidos, vasos, líquidos não me iliba da autoria ...
Ler MaisSempre me surpreendem os dedos. A sua existência assusta-me (que querem?) e sigo-os, de olhos abocanhados ao movimento (que fazem?). Tenho-os presos na boca da minha imaginação. Os músculos (tenho-os) tensos, preparados na flexão dos membros. Só a cauda ondula, poética, denunciando-me. As pontas das orelhas roídas (como?), a marca de uma pedra na costela (entretecida no ventre da minha mãe, como?), e ainda assim (admiráveis) os meus dentes, cravos poderosos de uma soberania sozinha, as minhas garras, isqueiros rápidos do corpo, e o meu pêlo, um derramamento pela pele do mais íntimo de mim, cheio de fome e sede do outro, dos seus dedos, aqueles que estão ...
Ler MaisA calma é um braço. Há um lago de leite e, ao fundo, o pôr do sol, esvaindo-se em tons de salmão. Esta é a hora. Um dedo toca o oceano brando, e um relevo de círculos concêntricos deixa-se embalar no sussurro da brisa e das águas lentas. Os flamingos da minha imaginação esvoaçam, banham-se, descansam de pé sobre uma pata. O silêncio é o som das aves, da brisa, da água, recapitulado. Um braço humano eleva-se e abre na elegância de um arco. A cabeça reclina-se sobre o ombro nu. O ar ...
Ler MaisA raiva tem dentes de cão pequeno. Sempre demasiados, Demasiadamente agudos, Longilíneos como pincéis. Contidos (sempre) num espaço (que é) ínfimo. E extravasada, ainda assim, o ar é uma bochecha. A raiva, contida sempre, miudinha, proibida, invade de dentro para fora, prestes (dentro da boca) a perfurar um vaso tenso e a lançar-se, líquida, em bossas. O lábio inferior, trémulo, sanguíneo. Os salpicos de cuspo profetizando vómito (tragam toalhas). Irrompe como um relâmpago, desirmanada do corpo que dança aos solavancos automáticos de uma convulsão febril. E fura, mas sempre os dentes, demasiado pequenos num cão demasiado pequeno que ...
Ler MaisO amor é uma caverna e um caminho pouco iluminado, fome, multiplicação dos pães, excesso e o levar das mãos à boca. O sal está algures nas paredes e no chão. (Como aparece no pão?) É transvisceral o amor. É transcorporal o amor. O amor transcende. Transpira. Recusar-lhe o suor é recusar-lhe o sal e o sabor. Como na poesia, a descoberta da verdade no amor faz-se pelo acidental no som, pelo lúdico no som, e pelo ombro a ombro das palavras escolhidas (ou o abraço ou o beijo) e pelas ervas daninhas que nascem ...
Ler Mais“Deixa as folhas assentar. Permite na chávena o Outono.” – disse de mim para mim. Vi-me a rodar no encantamento amarelo do chá. Se continuasse recolheria as folhas e os seus fragmentos, faria um pequeno monte, viveria além. Mas não podia. Não eram meus nem as folhas nem o arbusto, muito menos a terra, o ar e o sol, tão pouco o chá. Dali em diante contentar-me-ia com o perfume da lúcia-lima e a evocação de uma alegria original. Afastar-me da chávena quente custou-me o Inverno das mãos. Bebia-o, porém, nos sonhos e ...
Ler MaisEscreve os seis nomes numa pedra e os outros seis nomes noutra. Compra o leite E o azeite E o ouro puro. As pedras são para pôr aos ombros. Onde quer que entre leva-nos com ele. Estamos lá todos contidos em doze nomes de filhos. Gostava de ver o azeite a escorrer. Nos cabelos, o óleo O rosto, luzidio A barba a pingar As manchas da gordura da oliveira a alastrarem na roupa. Isto seria a união da cabeça ungida E do corpo que faz, Aarão. Estaríamos lá todos nos cabelos ...
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