Olhar para dentro
em memória do meu avô José Fernando Pereira Coutinho (18/03/1929-31/05/2022)
Os olhos fecharam-se.
A luz entrava na câmara
Depois da antecâmara,
Transformando a tenda das pálpebras
Num espectáculo de sombras chinesas.
Simples, tensionadas como pele de tambor,
Retumbavam pulsos surdos de luz.
Com efeito, a luz entrava e não saía,
Olhava para dentro,
De face voltada para a nuca.
Era como estar na barriga de um grande peixe
Por três dias e três noites.
Nauseabundo e escuro,
o ventre do peixe,
Profundo e interior,
sem poros para a luz.
A íris descolorava-se na espuma das ondas
E em breve seria de águas paradas
(Já tinha sido também um rio, um pântano
E um lago.)
Perguntava-me se a embarcação teria chegado a Nínive
Ou se se embalava na penumbra do porão,
Não aportando em lugar algum,
Navegando na pista infinita de um círculo.
No céu dos olhos há um osso alado,
O esfenoide.
Este parece voar entre ossos parados,
De olhos postos no horizonte.
E, no entanto, as órbitas escavam a morte no rosto,
Lembram o fim.
Entre o não ver e o não ouvir jazia a palavra.
Esvaziou-se a fala, na humidade da boca
E nos movimentos repetitivos da língua.
O corpo é agora ruína, casa desabitada,
De nariz vincado ao alto,
Como vela de um barco,
Nascendo da horizontalidade do leito.
Quase te esqueceste.
Porém, o pequeno bote da memória
reservou um rosto e alguns nomes.
(O rosto com nome seguia de colete salva-vidas,
Sentado e submisso a uma estranha forma de amor.)
O grande peixe acabou por vomitar-te,
Intocado e pronto,
E um abraço (cheio) de luz recebeu-te.
Abigail Ribeiro
01/06/2022
Imagem: “Boats on the shore”, de Joaquín Sorolla