Gravação
A Tua voz está gravada no meu endocárdio.
Ouço-a através de todas as camadas do meu corpo
Sim, o meu corpo.
Que é como quem diz um búzio,
nebulosa de todo um oceano,
maresia
e vento
desenrolados na gruta de um ouvido.
Sim, Tu habitas-me.
Sou tabernáculo,
tenda, cortinas, placas.
Que é como quem diz ossos, músculos
e vasos, pele.
O Teu nome jorra-me no sangue,
Sinto-o em convulsões sôfregas
na aorta.
Tenho sede.
A Tua voz responde
que beba o copo de água
pousado em cima dos pulmões
E que coma também
um pouco de pão
(da proposição,
reservado apenas aos sacerdotes).
Na planta
concebeste aurículas, ventrículos
e o Lugar Santíssimo.
A arca transporto-a
no autocarro,
sinto-a pulsátil no recreio,
inclino-me e pesa-me no peito.
O ruído das máquinas que trabalham
diz que não te ouve, que não existes.
Eu sei porquê.
É que elas não têm um coração de carne,
um ouvido íntimo da Tua voz,
que as guie mansamente a águas tranquilas
e as faça deitar em verdes pastos.
Abigail Ribeiro
24 de Julho de 2022
Imagem: «Airborne», de Andrew Wieth