O amor é uma caverna e um caminho pouco iluminado, fome, multiplicação dos pães, excesso e o levar das mãos à boca. O sal está algures nas paredes e no chão. (Como aparece no pão?) É transvisceral o amor. É transcorporal o amor. O amor transcende. Transpira. Recusar-lhe o suor é recusar-lhe o sal e o sabor. Como na poesia, a descoberta da verdade no amor faz-se pelo acidental no som, pelo lúdico no som, e pelo ombro a ombro das palavras escolhidas (ou o abraço ou o beijo) e pelas ervas daninhas que nascem ...
Ler MaisA intimidade é uma espécie de vapor de água entre silhuetas. Tem tato fino, Toca ao de leve o nome, di-lo muitas vezes, baixinho, guarda-o. A intimidade fecha os olhos e sente. Abre os olhos e colhe frutos. (É um limoeiro a que se estende um braço. Uma mão arranca.) Nem sempre os come. (Há cestos cheios de maçãs, peras, laranjas à sombra. Esperam.) As oliveiras que se contorcem ao longo de um eixo longitudinal são santuário de intimidade. Abrigam-na as voltas, a repetição, a cronologia que se conhece E aquele ...
Ler MaisNaquele ano levantou-se um vento diferente dos outros ventos. Como, de outra forma, se explica Os estores esvoaçantes, As suas barras metálicas a bater, insistentes, nas paredes, As janelas escancaradas no Centro de Saúde, Os corredores de vento no emprego? O vento invadia todos os espaços. Vinha de fora e tomava com dedos de espectro Todos os prédios e as casas outrora impenetráveis. Só os quintais e as quintas não estranharam. Os seus habitantes já caminhavam com a queimadura do vento ...
Ler MaisNaquele dia Não havia Senão homens. Varridos de delírios, Apenas homens. Não me lembro de outro dia assim. Apenas homens. Sentados em cadeiras amarelas Ou inquietos em sapatos incessantes Com raiva nas unhas, Que mordiam as palmas das mãos Ou dilacerados no peito, Matando-se por dentro em ravinas, Dependurando pescoços Mas não ainda. Mar a dentro Mas não ainda. Na linha férrea Mas não ainda. Quase. Quase. Por isso aguardavam Na sala de espera da urgência de psiquiatria. Como figos maduros cheirando a morte Mas não ainda. Abigail Ribeiro 23 de fevereiro de 2021
Ler MaisO poema é síntese Soco no estômago Pássaro fugido da gaiola Imagem de mil palavras Revelação e roda Sabedoria de moribundo Fruto conhecido Provado como que pela primeira vez Abigail Ribeiro Imagem: Still Life, de Roy Barley
Ler MaisPerguntava-me, por vezes, por que é que chamaram “fruto da paixão” ao maracujá. Desconhecia-lhe a mãe, flor. Esfaqueava-o, sem pensar nele, comia-lhe as sementes de aréola gelatinosa com o sumo que escorre. A colher cheia do lanço da ignorância. Sobravam as escalpes da casca, em madre-pérola ósseo, com veios arroxeados. Quase se adivinhavam meninges. E ía embora. Com aquele sabor tropical a trautear na boca. Exótico, estrangeiro, doce e ácido. Os meus avós tinham trepadeiras ...
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