Onda

      A casa é uma concha mais escavada e mais profunda onde cabem as divisões do mar e ainda a pérola     A onda regurgita na casa Não sei se lava com água salgada ou se suja as paredes de vómito     Não sei – porque a onda é um motim de idas e voltas e de vozes que discutem e contudo o som do mar enche a alma e há a paz acima do barulho --  não sei não sei se cresce ou se deita abaixo     Parece-me o eixo ...

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O Silêncio

  O silêncio é uma palavra difícil? Uma sala grande onde o vazio é ensurdecedor? Onde eu vivo não há o rio do tempo e a sala do silêncio é soalheira, um lago de luz, onde, por vezes, as águas se turvam. As artérias do tempo pulsam-te visivelmente nos punhos, no pescoço e nas têmporas. No meu corpo, porém, não há tecidos, vasos, líquidos onde o tempo possa dissolver-se. E o que lês no braile do silêncio tem as marcas de aguilhões que te agridem. Mas, repara. São marcas. É a dor fantasma em membro de outrora? Não ter tecidos, vasos, líquidos não me iliba da autoria ...

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Disse o gato

  Sempre me surpreendem os dedos. A sua existência assusta-me (que querem?) e sigo-os, de olhos abocanhados ao movimento (que fazem?). Tenho-os presos na boca da minha imaginação. Os músculos (tenho-os) tensos, preparados na flexão dos membros. Só a cauda ondula, poética, denunciando-me. As pontas das orelhas roídas (como?), a marca de uma pedra na costela (entretecida no ventre da minha mãe, como?), e ainda assim (admiráveis) os meus dentes, cravos poderosos de uma soberania sozinha, as minhas garras, isqueiros rápidos do corpo, e o meu pêlo, um derramamento pela pele do mais íntimo de mim, cheio de fome e sede do outro, dos seus dedos, aqueles que estão ...

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A Raiva Tem Dentes De Cão Pequeno

  A raiva tem dentes de cão pequeno. Sempre demasiados, Demasiadamente agudos, Longilíneos como pincéis. Contidos (sempre) num espaço (que é) ínfimo. E extravasada, ainda assim, o ar é uma bochecha. A raiva, contida sempre, miudinha, proibida, invade de dentro para fora, prestes (dentro da boca) a perfurar um vaso tenso e a lançar-se, líquida, em bossas. O lábio inferior, trémulo, sanguíneo. Os salpicos de cuspo profetizando vómito (tragam toalhas). Irrompe como um relâmpago, desirmanada do corpo que dança aos solavancos automáticos de uma convulsão febril. E fura, mas sempre os dentes, demasiado pequenos num cão demasiado pequeno que ...

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Gravação

  A Tua voz está gravada no meu endocárdio. Ouço-a através de todas as camadas do meu corpo Sim, o meu corpo. Que é como quem diz um búzio, nebulosa de todo um oceano, maresia e vento desenrolados na gruta de um ouvido. Sim, Tu habitas-me. Sou tabernáculo, tenda, cortinas, placas. Que é como quem diz ossos, músculos e vasos, pele. O Teu nome jorra-me no sangue, Sinto-o em convulsões sôfregas na aorta. Tenho sede. A Tua voz responde que beba o copo de água pousado ...

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Onde se amontoa o milho

  Eu guardo o teu segredo e tu guardas o meu. Escapulo-me do rebuliço, (vou ao teu encontro) afasto as canas com uma mão (vou ao teu encontro) e com a outra, o cabelo do milho com um braço (tenho um novelo quente no tórax) e com o outro (uma alegria pulsa no pássaro dentro do ovo). Os meus passos, velozes (o movimento ascendente dos joelhos) indiferentes ao burburinho da relva (a consternação que diz não escuto), ao arranhão com que as silvas sempre surpreendem (detenho-me um pouco na dor). E afirmo-te: Se ...

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As Ondas

  Continuo ao pé do mar, Os meus olhos no ir e no voltar mas desta vez na expectativa de que o mar viesse molhar viesse molhar-me os pés (eu ali sentada na areia molhada) e de repente fosse (ele) como um cão a lamber as pontas dos dedos e nesse contacto acendesse toda a rede eléctrica da sensibilidade e todo o corpo fosse ressuscitado pela ternura do animal e a seguir passasse a ver-lhe os olhos (sempre os teve e eu não os via, que morta andava). Mas não foi ...

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Olhar para dentro

    em memória do meu avô José Fernando Pereira Coutinho (18/03/1929-31/05/2022)     Os olhos fecharam-se. A luz entrava na câmara Depois da antecâmara, Transformando a tenda das pálpebras Num espectáculo de sombras chinesas. Simples, tensionadas como pele de tambor, Retumbavam pulsos surdos de luz. Com efeito, a luz entrava e não saía, Olhava para dentro, De face voltada para a nuca. Era como estar na barriga de um grande peixe Por três dias e três noites. Nauseabundo e escuro, o ventre do peixe, Profundo e interior, sem poros ...

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A passagem dos peixes

  No fundo do mar há um espelho de cabo dourado. Está lá pousado. Os peixes passam, Inexoráveis e encantados, Agitando gelatinas de fada, Nas suas mangas de cetim. São braços e pernas que caminham, Nadando, E fazendo-o, Levantam areias à sua passagem, Penetram túneis de água, Transpondo-se para espaços assombrados E sigmoides de tempo desconhecido, Imergulhado. Cruzeiro Seixas compreendeu-os, Sanguinolentos e antropomórficos, Seccionados e com tripés. Eu sei pouco sobre os peixes, Sobre as suas escamas e respiração, Mas vi o espelho, Mas vi o espelho.   Abigail Ribeiro 14 de março de 2022   Imagem: ...

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Poema sobre a luz

Para o meu filho L. A tua silhueta corre, Percorrem-te ondas como as do mar, Tens escamas de luz. Desenharam-te a tinta da China E, no entanto, és dourado, Sempre foste dourado E nos teus olhos anda o mar. Não há em ti cinzentos nem opacidades, Só berlindes que se divertem, Provocando a refração da luz de quem te olha. Qualquer pessoa que te fite é perpassada Por uma espada etérea E fica ali a beber do teu halo Pelos olhos. No cimo da tua cabeça ...

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