Perguntava-me, por vezes, por que é que chamaram “fruto da paixão” ao maracujá.
Desconhecia-lhe a mãe, flor.
Esfaqueava-o, sem pensar nele, comia-lhe as sementes de aréola gelatinosa com o sumo que escorre. A colher cheia do lanço da ignorância.
Sobravam as escalpes da casca, em madre-pérola ósseo, com veios arroxeados. Quase se adivinhavam meninges.
E ía embora. Com aquele sabor tropical a trautear na boca. Exótico, estrangeiro, doce e ácido.
Os meus avós tinham trepadeiras de maracujá no quintal. Levava sacos carregados de frutos colhidos pela minha avó. Como é que nunca reparei na sua flor, aquela rainha de beleza? Sua majestade, a flor do maracujá.
Presumia eu que o carimbo “fruto da paixão” advinha das propriedades medicinais da planta e do fruto, entre as quais um alegado efeito tranquilizante, que levou à sua utilização nos angustiados, agitados e insomnes desde a antiguidade. É também alegado que o seu uso excessivo poderia acarretar efeitos tóxicos, decorrentes da presença de ácido cianídrico (cianeto) na folha da passiflora.
Mas não. A “paixão” era a de Cristo.
No século XVI, os missionários católicos enviados para a América do Sul usaram as flores do maracujazeiro na aproximação aos povos indígenas. Tornaram-na um símbolo do sofrimento de Cristo na cruz e chamaram-lhe, também, “flor das cinco chagas”. Estabeleceram uma analogia entre a flor e a crucificação: os três estigmas lembravam os três cravos; os cinco estames encarnavam as cinco chagas; o ovário, do alto do caule, recordava o martelo usado para enterrar os cravos; a espinhosa coroa, por cima das pétalas, simbolizava a coroa de espinhos. Finalmente, as cinco pétalas e as cinco sépalas imitavam os dez apóstolos fiéis (excluídos Pedro e Judas Iscariotes, o primeiro por ter negado e o segundo por ter traído Jesus).
Fiquei a pensar que na natureza sempre encontraremos metáforas…